Luto: Algumas considerações sobre a vivência e superação deste processo



  Eros e a morte

"Era uma tarde quente e abafada, e Eros, cansado de  brincar e derrubado pelo calor, abrigou-se numa caverna fresca e escura.  Era a caverna da própria Morte. 
Eros, querendo apenas descansar, jogou-se displicentemente ao chão,  tão descuidadamente que as suas flechas caíram.  Quando acordou percebeu que elas tinham se misturado  com as  flechas da Morte, que estavam espalhadas no solo da caverna.  Eram tão parecidas que Eros não conseguia distingui-las.  No entanto, ele sabia quantas flechas tinha consigo e  ajuntou  a quantia certa. Naturalmente, Eros levou algumas flechas que pertenciam a  Morte  e deixou algumas das suas. 
 E é assim que vemos, frequentemente, os corações dos velhos e  dos moribundos, atingidos pelas flechas do Amor,  e as vezes vemos os corações dos jovens capturados pela morte".
Grécia Antiga, Esopo (620-560 a.C)

Como se pode perceber na citação acima, desde os primórdios buscam-se explicações mitológicas, religiosas, a fim de racionalizar a morte.  Apesar de a morte fazer parte do cotidiano racional de todos aqueles que têm vida, ela causa grande impacto sobre a vida daqueles que sofrem a perda. O processo de perda de um ente querido e a elaboração desta perda, como afirmam vários autores, faz parte do processo de desenvolvimento do ser humano.

O processo de perda, que se inicia muitas vezes no processo de adoecimento do ente querido e pode se estender por períodos distintos. No processo de adoecimento de cônjuge, a perda do companheiro é sentida na medida em que já não se pode mais contar com o companheiro adoecido em atividades, tais como rotinas de trabalho, tarefas domésticas, cuidado com filhos, desempenho sexual, entre outras.

Autores consideram que a morte mais difícil da qual tentamos nos recuperar é a do cônjuge, entendido como um evento potencialmente estressante. Estudos consideram os seis primeiros meses como os mais difíceis, ao passo que no final de dois anos após a perda, os indivíduos geralmente não apresentam alteração de sinais e sintomas.

Quando o quadro do adoecimento já está bastante avançado, podem surgir sentimentos contraditórios, tais como desejo de morte para alívio do sofrimento da pessoa adoecida, mas ao mesmo tempo, temor pela perda. Podem emergir sentimentos de culpa e impotência mediante a dor do ente querido.

O luto decorrente da perda, muitas vezes caracteriza um quadro de atenção clínica por apresentar alterações tanto emocionais quanto comportamentais no indivíduo que o enfrenta. Entende-se que o tempo de luto que o indivíduo irá enfrentar depende de vários fatores: circunstâncias em que a morte ocorreu, tipo de relação com o ente falecido, além dos recursos internos e externos que cada pessoa tem para enfrentar o processo de luto.

O luto decorrente de morte imprevista, ou, no caso que envolve a morte de um companheiro de longa data, apresenta particularidades, pois a qualidade dessa relação afeta o sentimento de saudade percebida após a perda. Pesquisas realizadas mostram que, no período que sucede a perda do cônjuge, existe a incidência significativa de depressão, alcoolismo, queixa de problemas e doenças físicas em seus parceiros.  Alguns sintomas comuns ao período de estresse são: ansiedade, desesperança em relação ao futuro, problemas com habilidades sociais, distúrbios do sono e alimentação, entre outros.

O processo denominado de luto consiste numa adaptação à perda, envolvendo uma série de tarefas ou fases para que tal aconteça. É algo inevitável, inerente à perda e vivenciado de maneiras distintas entre os seres humanos. Geralmente há alterações no padrão de sentimentos, comportamentos, sensações físicas e pensamentos em quem vivencia o processo. Dependendo da intensidade com o qual ocorrem, estas alterações podem a causar prejuízos ao indivíduo e merecem certa atenção. Algumas alterações são descritas abaixo.

Alterações
Sentimentos
Tristeza; Angústia; Raiva; Culpa; Ansiedade; Solidão; Desamparo; Saudade; Vazio; Alívio; Impotência.
Pensamentos
Descrença; Desesperança; Pensamentos Obsessivos (recorrentes); Confusão;  Alucinação.
Sensações Físicas
Falta de energia, Fraqueza, Aperto no peito, Dores de estômago, Falta de ar, Boca Seca, Hipersensibilidade ao barulho, Sensação de despersonalização (nada parece real)
Comportamentos
Alterações de sono, Alterações de apetite, Distração, Dificuldade de concentração, Choro, Agitação, Isolamento social, Atos para lembrar a pessoa, Guardar objetos da pessoa, Dificuldade em modificar ambiente (modificar rotinas, mexer em pertences da pessoa), Dificuldade de adaptação a nova rotina sem a pessoa.

Autores consideram que existem tarefas básicas para que se restabeleça o equilíbrio e se elabore de fato o processo de luto. Desta forma, a adaptação à perda, de acordo envolve quatro tarefas básicas:

1. Aceitar a realidade da perda
2. Trabalhar a dor advinda da perda
3. Ajustar a um ambiente em que o falecido está ausente
4. Transferir emocionalmente o falecido e prosseguir com a vida

Uma vez que o luto é um processo e não um estado, estas tarefas exigem esforços e tal como uma doença, a pessoa pode não ficar totalmente curada. Enfrentar e superar estas tarefas requer, muitas vezes, a atenção e assistência profissional para auxiliar o indivíduo a identificar as suas dificuldade e auxilia-lo a superá-las.

1. Aceitar a realidade da perda
Quando alguém morre, mesmo sendo uma morte previsível, há sempre um sentimento: “Isto não aconteceu.” Desta forma, a primeira tarefa do sofrimento é perceber a realidade de que a pessoa morreu e de que a pessoa não irá voltar. Chegar a uma aceitação da perda leva tempo, pois envolve não só uma aceitação intelectual, mas também emocional, esta última sendo mais demorada. A crença e descrença alternam enquanto se permanece nesta tarefa. Apesar de levar inevitavelmente tempo, os rituais tradicionais, como o funeral, ajudam muitos enlutados a avançarem na aceitação da perda.

2. Trabalhar a dor da perda
Muitas pessoas experimentam dor física, bem como dor emocional e comportamental associadas à perda. Uma vez que a pessoa em luto passa pela dor causada pela perda, suprimir essa dor irá muito provavelmente prolongar o processo de luto. Certas pessoas não compreendem a necessidade de experimentarem o sofrimento e tentam encontrar alívio das suas emoções, ao invés de se permitirem satisfazer a dor, senti-la e ter consciência de que um dia ela passará. Mais cedo ou mais tarde, a maioria dos indivíduos que evita o sofrimento consciente, acabam por apresentarem alguma forma de doença física ou psíquica.

3. Ajustar a um ambiente em que o falecido está ausente

Ajustar-se a um novo ambiente tem diferentes significados para as pessoas e vai depender da relação que se tinha com a pessoa falecida e os vários papéis que ela desempenhava. Por exemplo, para muitas viúvos, o tempo que leva para se perceberem como é viver sem os seus cônjuges é cerca de 3 meses após a perda. No caso de uma viúva, a perda de um marido pode significar a perdas de um parceiro sexual, um companheiro, um contabilista, um jardineiro, etc., dependendo dos papéis que eram normalmente desempenhados pelo seu marido.
 No caso de morte do cônjuge, os parceiros sofrem grande pressão social para rapidamente retornarem às suas rotinas, tendo seus recursos internos fortemente mobilizados para conseguirem lidar com a tristeza e, simultaneamente, retomarem sua funcionalidade. A estratégia de redefinir a perda, de tal forma que pode recair para o benefício da pessoa que viveu a perda, é normalmente parte do desta tarefa. Estabelecer novas relações e editar as relações pré-existentes com familiares e amigos é uma ação a ser desempenhada. Estabelecer rotinas adaptadas a nova realidade, modificar o ambiente da casa, reorganizar objetos pessoais entre outros faz parte deste momento. Este movimento pode ser feito de forma gradativa, pois mobiliza muitos sentimentos, por vezes contraditórios. É importante que a pessoa, ao reorganizar a sua vida, não pense que desta forma estará apagando ou dando menos importância a pessoa falecida.  Apenas está se readaptando com a sua ausência.

4. Transferir emocionalmente o falecido e prosseguir com a vida
Uma pessoa nunca perde as memórias de uma relação significativa. Autores afirmam que o processo de luto termina quando o enlutado deixar de ter uma necessidade de reativar a representação do falecido com uma intensidade exagerada no seu cotidiano. Neste item se discute a disposição para entrar em novas relações que está diretamente dependente de encontrar o espaço adequado na vida psicológica do enlutado. Uma maneira de não completar esta tarefa é não amar. Algumas pessoas agarram-se ao vínculo que tem com o passado, ao invés de seguir em frente e formar novas vinculações. Algumas pessoas sentem a perda de uma forma tão dolorosa e passam a crer que nunca mais vão amar. Para muitos, esta é a tarefa mais difícil de alcançar, ficando-se por vezes preso nela e só tomando consciência disso, muito tempo depois, verificando que as suas vidas estagnaram após a perda. O sentimento de deslealdade ou o medo catastrófico de uma nova perda podem bloquear a formação de novos compromissos. Esta tarefa pode ser alcançada a medida que a pessoa percebe que pode voltar a amar sem deixar de ter afeto pela pessoa que perdeu.

Não existe uma resposta conclusiva para definir o tempo que leva para o luto de uma pessoa ser elaborado e concluído. No entanto, quando se perde uma relação próxima, é muito improvável levar menos de um ano e para muitos casos dois anos ou até mais não é muito tempo. O processo de sofrimento é muito variável, e além disso, a cada nova estação, férias e aniversário pode haver momentos de fragilidade em relação a perda. 

Pode haver regressões num processo de luto, até mesmo quando o enlutado já passou claramente para uma fase seguinte. A pessoa pode regressar a padrões anteriores em períodos de estresse. Isto não quer dizer que haverá uma regressão permanente. Pelo contrário, a regressão passa habitualmente assim que a situação estressora termina. Um sinal de uma reação de sofrimento estabilizada é quando a pessoa consegue pensar no falecido sem dor e quando consegue reinvestir as suas emoções em atividades prazerosas que não tragam risco a sua saúde, além de investir em outros relacionamentos afetivos.


Revisão bibliográfica por Andresa Soster

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